quarta-feira, 17 de junho de 2015

Segredos de família: actos de memória e imaginação.


 Ao dedicar esta fotografia tirada com a filha ao colo e o marido José Dias, a sua mãe, para que ela pudesse, "vê-los a toda a hora", Zulmira dos Santos tenta diminuir a distância que a separa da sua terra de origem, S.Miguel D´Acha, de onde partiu para o Barreiro, para se juntar a seu esposo, José Dias, que tinha vindo na leva de "ratinhos" trabalhar para a CUF.

 A fotografia não tem uma data,(julgo que pela idade da minha mãe que nasceu em 1927, três anos após a "menina" sua irmã, a fotografia seja de 1924), tem no verso as palavras escritas pelo seu punho, que atestam a sua alfabetização, rara entre as mulheres do seu tempo, e note-se o próprio esposo era analfabeto, como teria adquirido a competência da escrita num interior rural da Beira Baixa, seria duma família com mais posses e condição do que a dele? A sua união teria começado por ser clandestina, e com a, sua gravidez, forçado o casamento? Eu que sou neto deles pelo lado materno, ainda hoje não sei ao certo, e não sei se a minha mãe se recordará de alguma coisa pelo estado senil em que se encontra actualmente, nos seus 86 anos.

 Que sei eu de facto acerca deste casal e da filha que está ao colo? Movimento  que faço em  terreno movediço das recordações de uma identidade familiar, no campo da fotografia privada de família. Toda a fotografia, e esta em particular se movimenta pela superfície das coisas, ocultando a vida que se vislumbra apenas nos contornos, num jogo de luz e sombra. Ninguém pode captar essa vida interior, nem mesmo as objectivas mais rigorosas, isso só é alcançável pelo sentimento.

 Vamos então admitir que Zulmira na sua aldeia se apaixonou por um rapaz mais pobre que guardava cabras e andava descalço, deve ter sido contrariado esse deleite e com uma gravidez indesejada deve ter sofrido esse trauma no seio da família, "a menina" que tem ao colo não tem ainda nome próprio, à data da fotografia, não seria baptizada, foi-o à hora da sua prematura morte, provocada por "bexigas".

 Mas a história começa uns três anos antes, quando após o parto na "terra"e por cisma sua, se junta ao seu "Zé". No Barreiro  emprega-se numa "costureira" onde trabalhou algum tempo, até começar a ficar doente, faz uma tentativa de suicídio e é internada no Hospital Miguel Bombarda em Lisboa. Durante catorze anos o seu Zé visita-a com as agora duas filhas pequenas, entretanto a mais velha viria a falecer, como acima disse, tendo a minha mãe ficado filha única. Zulmira faleceu naquele hospital, e o Zé, operário analfabeto ficou viúvo ainda na casa dos trinta e com uma filha pequena a seu encargo.

 Diga-se que se a primeira parte da sua vida terá sido algo trágica, daí em diante viria a revelar-se mais estável. pois viveu até aos oitenta e três anos sempre na companhia da sua filha, revelando assim uma particular relação familiar, de homem que nunca mais voltou a casar, e que ficou em "casa de sua filha para sempre", mesmo depois desta se ter casado e tido filhos e a sua própria vida, o que era certamente invulgar.

 Eis o que me recordou a aprouve aqui registar a partir duma viagem pelo tempo, pelos detalhes duma fotografia e do seu verso anotado com uma mensagem duma filha a uma mãe, como que sugerindo protecção e legitimidade, numa afirmação pessoal, "saudades do José e beijinhos da menina".

 Para terminar devo acrescentar que dos meus quatro avós só ela sabia ler e escrever, José Dias, mesmo assim foi reformado depois de 40 anos de trabalho na CUF, morreu  analfabeto, em casa da sua filha com quem sempre viveu, tinha 83 anos .

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